sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Alexandre Carvalho - Cursos e Oficinas

*****

A Garagem Emética
Um ensaio para o desbloqueio criativo

Alexandre Carvalho

Fazendo alusão óbvia, e não por acaso, a um dos trabalhos mais famosos do artista gráfico e autor de histórias em quadrinhos francês, Jean Giraud, também conhecido como Moebius, intitulado A Garagem Hermética, apresento aqui fragmentos básicos do que chamei de A Garagem Emética: um ensaio para o desbloqueio criativo.

Publicadas originalmente no final da década de 1970, inicialmente na revista Métal Hurlant, da editora Les Humanoïdes Associés, as histórias do mundo da Garagem Hermética eram criadas de forma improvisada, conforme conta o próprio Moebius em entrevistas posteriores. Ele desenhava uma página sem roteiro nem planejamento do que viria na próxima, e sem ter noção do que seria escrito nos balões de fala, ou até se teria algum tipo de texto, partindo apenas de uma premissa, de um universo ficcional vagamente imaginado. A partir dos desenhos de cada página, desenvolvia as histórias sem nem mesmo voltar para ver o que já tinha feito. Criava o que queria respeitando algumas regras básicas que esboçava e, por vezes, reutilizando alguns personagens. E assim Moebius criou um mundo de ficção científica que virou um marco dos quadrinhos e referência tanto para o cinema, como para a literatura, para a música e para mais quadrinhos. O mundo criado espontaneamente ainda rendeu uma série de álbuns com seu personagem principal, Major Fatal, escrita e desenhada pelo próprio Moebius.

Como leitor das histórias da Garagem Hermética, é possível dizer que o conteúdo final é aquilo que cada um encontra nelas.  Ou seja, Moebius dá aos seus apreciadores espaço para que coexistam em seus contos desenhados.

Princípio
Quando nascemos e somos apresentados às primeiras noções de vida, somos levados, ainda que sem a devida consciência, a um desespero misturado a um imenso fascínio. Temos tudo pela frente, tudo a aprender, tudo a despertar, tudo por fazer; e a total liberdade para tomarmos os caminhos que preferirmos. Não há regras a serem seguidas; e nem, por óbvio, quebradas. Somos livres e é só. À medida que o tempo passa: códigos, normas, leis, preceitos, princípios, regulamentos, tradições, compromissos e formatos vão aparecendo e nos sendo impostos; para o nosso bem, para o nosso mal e para a manutenção das relações entre as gentes. É assim que conseguimos nos entender; e entender o que se passa a nossa volta.

Mas o que nos dá segurança é também o que nos leva ao seu oposto. Depois de embrulhados, carimbados e etiquetados para a distribuição e para o consumo, fica bastante difícil de fazermos um pequeno rasgo na embalagem a fim de observarmos o que está a acontecer do lado de fora. Até mesmo porque, por força dos hábitos, não possuímos ferramentas para tal; nossas unhas já estão gastas de tanto aranhar o invólucro por dentro e nossas mandíbulas já não têm mais forças para arrebentar o barbante. Ou simplesmente porque nem nos damos conta de nossa condição.

Todos nós já desenhamos um dia, não há como negar. Toda a criança nasce sabendo desenhar. E saber desenhar é algo bastante relativo. Mas aí começamos desde muito cedo a escutar críticas relativas aos nossos desenhos, muitas vezes por absoluta ignorância das pessoas que nos cercam, presas aos seus modelos em geral já desgastados. “Não é assim que se desenha o olho”, “a cabeça está muito grande”, “a casa está muito pequena em relação ao menino”, “onde está rabo do cachorro?!”. E vamos criando e reforçando um senso crítico distorcido a respeito de nós mesmos e das nossas habilidades.

Umbigo
A criança não tem preocupações. Está onde está e nunca no passado ou no futuro. Vive o presente; o aqui e o agora. E está sempre submissa ao que ocorre ao seu redor, assimilando a tudo sem conceitos preestabelecidos. É importante também que sejamos mais submissos ao mundo, às coisas, às cores, aos sons, aos cheiros, aos sabores, ao toque, aos sentimentos e às ideias dos outros. É aí que se encontra a nossa matéria prima. É daí que vamos tirar novas ideias e confrontá-las com as nossas velhas e desgastadas. Quando ficamos o tempo todo atolados dentro de nossos próprios umbigos não aprendemos nada. Vivemos colados à ignorância com a ilusão de que sabemos muito, mesmo porque esse tipo de pensamento é típico de quem ignora. Aprender é fundamental; não é para outra coisa que estamos aqui. E aprendizado é troca de informações.

Expectativas
Evitar expectativas desmedidas quanto ao resultado do trabalho também é fundamental para o desbloqueio. Quanto maiores as expectativas, maior a pressão interna para que saia a melhor de todas as obras já executadas na face da terra, quiçá no Universo. O que já é noventa e nove por cento das possibilidades de bloqueio criativo. A qualidade será atingida mais tarde, com empenho, pesquisa, leituras, releituras e o fazer e refazer partes do trabalho se preciso for; não no momento da criação. Ainda que, por vezes, ao liberarmos a mão, a mente e a alma em direção à página em branco, possamos nos surpreender muito positivamente com os resultados imediatos e muito próximos da finalização. A técnica da Garagem Emética é sempre um bom exercício para obtermos um termômetro de nossa rigidez interna.

Criação
Para criar é preciso, acima de tudo, sensibilidade, imaginação e coragem. Qualidades e possibilidades que a criança tem de sobra e ao natural. Sensibilidade para absorvermos o que se passa conosco e o que passa através de nós; imaginação para transformarmos e reciclarmos a nossa absorção nos formatos que desejamos; e coragem para nos expormos perante o(s) outro(s), porque parte do nosso eu mais interno, intenso e subliminar está sempre, de alguma forma, contido em nossas obras.

Crianças são sentimento puro ao executarem seus “trabalhos”. Crianças não pensam antes de fazer: saem fazendo. E sequer cogitam se estão executando certo ou errado, ou bonito ou feio, ou isso ou aquilo. Não até que comecem as comparações. Defendo que o nosso verdadeiro tesouro vem dos primeiros pensamentos que nos surgem, porque estão livres da nossa própria interferência. Livres do nosso eu carrasco que pensa sempre que aquilo podia ser melhor, mesmo antes de ser registrado no papel, ou no suporte por nós escolhido. E é aí que tudo se perde. E é bem aqui que entra a questão do êmese, ou a técnica da Garagem Emética, para iniciar uma obra, seja lá de que tipo queiramos que ela seja.

A técnica é simples, ou ao menos deveria ser: sem jamais olhar para a página/papel/tela/suporte qualquer em branco, sair riscando sem parar, tudo que vier à mente. Sem rasurar, nem usar borracha para apagar, nem voltar atrás para refazer ou rever o que está posto ou mesmo para relacionar ideias. É só viver a obra. Deixar fluir. Deixar-se fluir. Não pensar, não tentar ser lógico, racional. Ir fundo, direto na jugular. É importante que comecemos a rascunhar como um animal que urra de dor, de maneira rude e desajeitada. Só então encontraremos nossa inteligência, nossas formas, nosso olhar, nossa voz.

Liberdade
E se o espaço em branco é o nosso maior entrave prático para criar, é porque ele representa todas as possibilidades existentes e inúmeras outras mais. Diante do espaço em branco temos total liberdade para inventar e escrever o que bem entendermos. E isso deveria ser a solução; mas não parece ser. Ao menos não à primeira vista. O fato é que não estamos mais acostumados com a liberdade; aquela que perdemos quando deixamos de ser crianças. Por mais que possamos apregoar aos sete ventos e quatro cantos que amamos a liberdade, nós, de fato, a tememos do fundo de nossas almas apavoradas e sedentas de segurança. Sentir-se livre dá trabalho. Sentir-se livre é encararmos nossas inseguranças de frente e arrancar delas o sumo de nossos desejos, que são a antítese de tudo isso. A insegurança é prima irmã da inércia; ao passo que a liberdade só sobrevive colada à ação. Sentir-se livre é abandonar, de corpo e alma, as nossas tão acolhedoras zonas de conforto.

Êmese
Êmese é o mesmo que vômito. Nada mais do que um sinônimo para a palavra mais conhecida relacionada ao ato de expulsar ativamente o conteúdo gástrico pela boca. Todos já fizemos isso ao menos uma vez na vida. Só que neste caso, o conteúdo não vem do estômago, mas do inconsciente. Ou da alma. E o receptáculo desse conteúdo é a página em branco. Quando falo em êmese, quero dizer isso mesmo: ao criar devemos vomitar o inconsciente no espaço em branco. E quando se vomita não se pensa. Não se mede consequências. Não dá para segurar. É fazer, deixar fluir, e ver os resultados em seguida. E é esse dispensar sem pensar que chamo de A Garagem (porque está guardado) Emética (porque o que está guardado é colocado para fora de um só golpe). Por vezes pode parecer confuso, degradante, ácido e até doloroso, dependendo do que temos por dentro e deixamos sair no momento. Mas, inegável: sempre será unicamente nós mesmos; original na essência.

Nenhum comentário:

Postar um comentário